André Luiz Alvez
Estava pensando nessas linhas no dia do meu aniversário, mas a febre de escrever chegou e fevereiro está longe, então lá vai, desde o começo: Quando eu nasci, não veio um anjo alado tocando trombeta. Meu anjo era um fantasma corcunda, ligeiramente estrábico, calvo, barba branca e falhas no par de asas. Por onde caminhava, deixava cair penas quase brancas. Portanto, um anjo totalmente diferente do da Adélia Prado. Carregar bandeira? Nem pensar. O meu anjo era do tipo sincero demais, sem que ninguém lhe perguntasse, olhou para a minha mãe e disse: “não vai viver muito tempo, é todo torto e não sabe nem chorar”. Errou feio, logo chegarei aos sessenta anos e aqui estou, escrevendo as memórias esparsas, mistura de sonho com realidade, imaginando como pode ter sido o meu nascimento, embora daquilo tudo só saiba que minha mãe quase morreu e, sim, eu sei chorar, só me escondo, às vezes.
Num dado momento, o velho anjo se convenceu que eu podia caminhar e tentar viver. De início um enorme abismo, sem chances de saltar. Ele deu de ombros, riu, falou que tinha avisado, “um sujeito torto não tem muito futuro”, foi falando e caminhando estabanado, espalhando as penas pelo caminho. Passos atrás dele, segui agachando e apanhando todas as penas enquanto prestava atenção na viagem. *Anjo das asas cansadas, passadas pesadas, contornou o abismo e eu segui atrás, até ultrapassar a escuridão.*
Vou deixar essa história do anjo para o final, porque a imagem de um espantalho, já faz dias, vem se mostrando diante dos meus olhos incrédulos. Por mais que eu lhe peça para desaparecer, continua me atormentando. Muitas pessoas adoram o espantalho e eu custo a crer no que deles escuto: “espantalho, espantalho, espantalho!” Esgoelam, aqui, no enterro da majestade, nos sombrios castelos, na fria Nova York. Na clínica dentária reina o silêncio. Todos com os olhos grudados no celular. Ultimamente tenho me punido por prestar atenção demais no celular e, muitas vezes, não enxergar o que é real. E se a tecnologia avança e ao invés de gente só encontrarmos os robôs? Robôs não têm sentimentos. Mas o mundo virtual aceita a entrada dos humanos. E lá a gente pode voar, amar quem quiser, sentir prazer sem ser real. Talvez não seja ruim. Sou um tanto apegado em coisas que não existem. Uma moça usando máscara passa diante de mim. Meus amigos morreram e não pude fazer nada, a morte invisível os levou e o espantalho sorriu, tossiu, gargalhou.
Desde muito tenho a mania de olhar a pessoa e imaginar como foram quando criança e como serão no futuro. O sujeito magro, com o corpo estirado na lateral do sofá, quando criança era esperto, arteiro, subia nas árvores. Como ele será quando a velhice chegar? Morre antes de tanta magreza? Ele sorri para o celular e o defino de vez: vida longa, não existem velhos gordos, são sempre magros, iguais a ele. Sim, chegará próximo dos noventa. Quantos anos tem agora? Cinquenta, talvez. Tem mais quarenta pela frente. Mas pode ser que um tijolo lhe caia na cabeça ao atravessar a rua. “Senhor Maurício” grita a atendente, o magricela se levanta calmamente, passa por mim e sinto uma vontade quase irresistível de lhe pedir para tomar cuidado com os tijolos da vida. As mulheres das casas dos telhados rosas foram atacadas, os de pele de chocolate foram mortos a tiros de fuzis, e o que eu escuto? “espantalho, espantalho, espantalho!” Lá fora um bando de pássaros rodeia as árvores. Pássaros são instrumentos musicais que voam. Eles aprendem a voar sozinhos. E eu custei a andar. E se os homens pudessem voar?
Meu amigo que compõe versos murmura escondido, espantalho, espantalho, espantalho! Como você consegue pensar nas rimas do seu poema se lá fora a vida castiga a minoria tentando se esconder do espantalho? O zumbido, a obturação, a tortura. Saio sentindo o vento da liberdade. Duas moças caminham pelo canteiro da grande avenida. Conversam, trocam ideias, sorriem e bebem água. No lugar do celular, carregam garrafinhas de água. Sinto sede. Tenho esse costume besta, não posso ver ninguém bebendo que sinto sede, não posso ver ninguém comendo e também quero mordiscar a mesma comida. Desconhece a fome quem nunca sentiu o estômago roncar. O espantalho e seus asseclas ignoram a falta de comida, comam ossos, aprendam a pescar, tem muita fruta nos pés de manga, eles dizem, enquanto salpicam a picanha ardendo na brasa.
Uma criança na janela no carro ao lado sorri para mim. É loira encaracolada, uma rosa presa aos cabelos. O que será quando crescer? Uma médica, imagino. E se fosse uma criança preta? Eu pensaria num futuro bem mais difícil do que essa que balança as mãos rosas num definitivo adeus. E se não existissem cores nas peles, se fôssemos todos invisíveis? Seria tão melhor... E se tudo for um sonho? Se nada disso existe e somos na verdade o resto do sonho de um poeta agoniado? Ou de um cruel assassino? Se não formos gente, mas formigas, fugindo do garoto rebelde que descobriu a nossa trilha e agora quer encontrar o formigueiro? *E se a chuva for a lágrima de Deus.* Deus tem cor?
Relatos esparsos golpeiam a minha mente. Busco flores e pássaros, encontro o vazio. E o que faz o espantalho? Afugenta as aves, muitas morrem antes mesmo de viver. Em volta do espantalho, os corvos e os abutres crocitam, ferozes. “A felicidade é uma arma quente”, *eu prefiro andar amado.* As caminhonetes carregam rifles e bandeiras, basta um movimento em desacordo e o ruído é o estampido do gatilho. Muitos tombam, a maioria mulheres. *Agora o espantalho finge proteger as flores.* Na calada da noite, mesmo em plena luz do dia, seus asseclas esmagam as rosas, as pétalas que sobram se escondem no vento, enquanto a horda ensandecida grita o mesmo mantra: “espantalho, espantalho, espantalho!”.
Uma moça nova e desajeitada, escorando com o joelho o filho de colo junto à barriga, pede esmola no semáforo. O sinal estava aberto e fui embora. O sinal nunca fecha para quem tem fome, está sempre aberto para o escape dos veículos brilhosos. O sentimento de solidariedade vence o incômodo, resolvo separar um dinheiro, dar a volta, ajudar a moça desajeitada. As mãos dela tremem fazendo um barulho de moedas se chocando. Quando tento encarar os seus olhos, uma moto enorme para ao nosso lado, o sujeito acelera, faz barulho, é como se falasse: espantalho, espantalho, espantalho!
O enfezado homem de Deus fez companhia ao espantalho, foram ao velório sem pensar na defunta, queriam mesmo espalhar a ignomínia. Como dormem, com o que sonham? Para espanto dos súditos, o espantalho insensível, sorriu para o Rei enlutado. Não quero mais sentir essa dor. Melhor voltar ao meu anjo. Ele esteve ao meu lado diversas vezes, em fases distintas da minha vida, em cada passagem foi falando e acenando, cada vez mais velho e rabugento, derramando tantas penas das asas, aquelas que desde sempre juntei. E sem que ele percebesse, formei minha própria asa e hoje já posso voar sozinho. E quando voo, enxergo o futuro, posso ver as flores nascendo nessa primavera, a esperança se espalhando pelos campos até chegar às grandes cidades. Bem lá no fundo da floresta, no tampo esquecido dos tempos sombrios, pendura em um pau oco a figura desprezível do espantalho, molhado de chuva, esquentado pelo sol, sentindo frio, tentando em vão assoprar o cair das cinzas, o que restou do fogo da alegria. Mas há de se ter cuidado com o uivo dos coiotes, eles restaram e mesmo feridos, ainda sussurram: espantalho, espantalho, espantalho!...
Crédito: Campo Grande News
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