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terça-feira, 31 de maio de 2022

Comemorando 300 mil acessos na página do Blogue do.Lado Avesso

Registro minha alegria e gratidão por chegar aos números apresentados abaixo, para mim significativos, pois são o fruto de um trabalho simples e dedicado.

Blogue foi criado no intuito de ser fiel às artes em geral, com constância e simplicidade. E, felizmente, tenho mantido esse propósito ao longo de quase 1 década.

Sobretudo, minha gratidão a você, leitor(a), que tem prestigiado as publicações culturais deste Blogue do Lado Avesso

Estatísticas:

● 300.000 acessos na página

● 31.315 a média de acessos por ano

● 1049 publicações 

● 673 seguidores 

● 612  comentários publicados

Um grande abraço, Ismael.

domingo, 22 de maio de 2022

Diários de Bicicleta, de Lucilene Machado

Sábado à tarde, quase outono, quase frio, quase nostalgia ressoando no ar e você sente que a felicidade está bem perto, um movimento e você será capaz de tocá-la. Pela cidade, prenúncios de estreias, de shows, de recomeços, gente voltando das férias, motos correndo e eu a espiar a manifestação de um prazer quase do avesso. É a vida num país tropical.

O homem, que cruza meu campo de visão, carrega uma mulher no guidão da bicicleta, o que me trouxe à memória qualquer coisa inquietante. Já estive sentada no guidão de uma bicicleta. As mulheres de minha geração estiveram. Era estar dentro de um abraço frouxo que poderia ser apertado a qualquer momento. O homem encurvava a coluna como uma forma de proteção à sua passageira que, por sua vez, abria um sorriso aos passantes. Era preciso certo equilíbrio para superar as curvas, os desníveis do caminho, o areal acumulado nos vales e quase sempre se terminava em queda. Bicicleta de um lado, corpos de outro. Ficávamos estatelados no chão a olhar o céu, porque valia muito mais olhar o céu do que a terra.

Depois o relógio foi torcendo o tempo sobre os viadutos, sobre os asfaltos velozes onde voam os carros e, o cinza subúrbio poluiu o céu. Os sonhos que eram poéticos se acabaram, como acaba qualquer modismo. A vida vai urdindo o necessário para dissimular o romantismo dos jovens e já não se vê, pela cidade, cenas como essa. Elas desapareceram dos reinos que desapareceram dos mapas. Ficamos nós tropeçando em memórias antigas, porque as recordações abarcam tudo e não apenas as grandes efemérides do coração. 

Invejei a moça de cabelos loiros esverdeados (e diga-se, esvoaçantes) que mantinha as pernas esticadas para dar equilíbrio ao ciclista. O casal cheio de gestos livres e risos soltos possuía seu centro de gravidade, seu eixo, sua densidade própria que os olhares opositores não modificavam. Não se cansava de fazer girar a bicicleta como também as sedutoras formas humanas de músculos e tornozelos. Aquelas duas pessoas vagabundeando nas ruas eram o centro do universo. Um universo do qual eu estava à margem. Pareciam pedalar entre os campos de lavanda, de um passado qualquer, e nem se deram conta do meu olhar esticado, tampouco dos suspiros retidos no meu peito. Calei-me para ser digna de observar, dentro dos limites dos meus olhos, a forma loura e esvoaçante da vida escorregando pelo tempo, porque a eternidade é feita de cenas simples e inesquecíveis que podem nascer a qualquer momento. Mas, confesso, senti-me embrutecida. A alma querendo escapar, querendo atirar-se sobre a bicicleta, querendo girar... Corri para casa segurando o abdômen, segurando a vida a sacudir-se, a alma insurgida, feito um filho que quer nascer, as vísceras mudando de lugar, ameaça interna, prenúncio de furacão. Eu que andava tão acostumada a coisas prontas não suportei a poesia alheia. O desejo começou a tomar formas estranhas. Precisava me redimir, me purificar, me livrar daquela inveja grudada no estômago.

Em casa, baixei o filme Butch Cassidy & The Sundance Kid (Dois homens e um destino) e assisti várias vezes, até a alma se aquietar. Acabo de olhar no espelho e ver-me partida em muitas, todas muito parecidas, todas com a mesma matriz a arrebanhar pensamentos, a dar teto a um mesmo silêncio até sermos justificadas. Porque não há mulher, por essas bandas da terra, que não merecesse viver uma cena como essa...

Lucilene Machado

sábado, 21 de maio de 2022

Tempo não é dinheiro

 

Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, "tempo é dinheiro". Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. 

Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo. 

E justamente a busca pela instrução do trabalhador é o trabalho pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: "eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize". As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada.

Antônio Cândido

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Lídia Baís, por Raquel Naveira


Lídia Baís foi a precursora das artes plásticas sul-mato-grossenses, nascida em 1900, aluna de Henrique Bernadelli e Osvaldo Teixeira, amiga de Murilo Mendes, dona de um espírito genial, sensível e atormentado. Era filha de Bernardo Franco Baís, o italiano de Luca, que escolheu Campo Grande nos idos de 1879, forte e poderoso comerciante, dono do sobradão da Afonso Pena, à beira dos trilhos, conhecido como “Pensão Pimentel”, local onde hoje funciona o SESC-Morada dos Baís, que abriga um pequeno museu com peças e quadros de Lídia, ponto de encontro para música e atividades culturais.

Personagem intrigante: uma artista de alma amarrada e flagelada, talento que desabrochou e foi abafado na marginalidade. Lembro-me bem dela. Fui sua vizinha durante muitos anos. Eu a via, às vezes, atravessando a rua, em direção à casa de seu irmão Bernardo: saia plissada, meia soquete, cabelos em cacho sob a boina, lenço terminado em laço no pescoço. Ela despertava em mim o fascínio e o horror que as crianças têm por seres fantásticos. Ficávamos de pé junto ao portão de ferro, observando o pátio coalhado de cachorros e galos, com medo de sermos pegos em flagrante naquele ato de espionagem. Vizinhos e parentes contavam histórias sobre ela, seus quadros, seus hábitos estranhos. Quando ouvia comentários do tipo: “_É meio louca”, eu pensava o quanto aquelas pessoas eram cruéis e impiedosas e nutria por ela a secreta admiração que tenho por todos os desterrados. Lídia tem sido presença constante em minha poesia. Vários de meus poemas, direta ou indiretamente, falam de Lídia. De “Pensão Pimentel” cito este trecho:

Foste palacete
Com lustres,
Cadeiras de balanço,
Retratos da Europa;
Abrigaste sonhos de um artista

Que desenhava frutas, mulheres, dragões.

Em “Confissão de uma monja”, espécie de lamento da mulher solitária, veio-me a lembrança de um quadro de Lídia, onde o homem carrega uma cruz de tamanho proporcional e a mulher uma descomunal encimada por um dragão, uma serpente e uma maçã:

Eu sei irmã,
Que minha cruz é de bom tamanho,
Que posso carregá-la,
Que as formigas suportam muitas vezes mais
O próprio peso,
Que ela é leve
Comparada a outras cruzes,

Que devo agradecer volume
E medidas razoáveis
Para uma cristã,
Eu sei irmã,
Que não se deve lamentar,
Que no caminho da mulher
Há sempre um dragão,
Uma serpente,
Uma maçã.

Fui uma vez a uma festa junina numa fazenda que se chamava “Fazenda das Moças”. Indaguei o motivo do nome e me disseram: as moças eram Lídia, Ida e Celina, as irmãs Baís. Nascia um poema, do qual transcrevo estrofes:

Aqui, na "Fazenda das Moças"
Viveram moças
Que envelheceram,
Murcharam como flores dentro de livros.

***

Eram moças
E, embora hoje seus ossos tenham séculos.
Continuam sendo moças,
Caminhando, ávidas de amor, pela fazenda.

Observando o famoso quadro da Santa Ceia em que Lídia se retratou ao lado dos apóstolos, escrevi o poema “Sacristia”, que finaliza assim:

Encarei o olhar vítreo dos santos,
O semblante de cada apóstolo
E coloquei-me ora do lado de Cristo,
Ora ao lado de Judas
Na Santa Ceia.

O problema de Lídia, seu estar-no-mundo-acorrentada, foi de ordem espiritual. Lídia, sedenta de Deus como uma corça diante do manancial das águas, serviu ora a Deus, ora ao demônio do egoísmo e da insegurança. Ficou presa na própria teia como uma aranha trágica e fatal. Ah! Como a compreendo! Como me compadeço dela na sua lucidez e na sua demência.

No centenário da Morada dos Baís, Lídia foi tema de uma peça teatral, um monólogo com a atriz Tatiana de Conto interpretando Lídia, direção de Thaty D. Meo e pesquisa de Fernanda Reis. Também inspirou um concerto de músicas que ela amava e outras que ela compôs, com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campo Grande, sob a direção do regente Eduardo Martinelli. Resgate de raízes profundas de nosso inconsciente coletivo.

Logo que a casa foi restaurada, vitória da conscientização e da memória da cidade, escrevi o poema “Casarão dos Baïs”, após a leitura do livro Duas Vidas: Bernardo e Lídia Baís, de autoria de Nelly Barbosa Martins:

Crepúsculo,
O sol marcha para o oeste
No oeste do país,
A oeste, o futuro,
A nova aurora
E eu, todo mergulhado
Na nostalgia dessa hora.

Com os pés nos trilhos,
Observo o sobradão:
As portas e janelas em arcos,

As ponteiras em forma de pinhas,
As paredes alaranjadas
De pôr-do-sol.

Ouço o barulho do trem,
Serpente de ferro rangendo,
Soltando fumaça;
A boca da noite cospe fagulhas
Sobre meu chapéu.

Antes de ser abatido pelo trem,
Corro em direção ao casarão,
Abro a porta,
Um raio de sol entra pelo vão,
Vejo Lydia no centro da sala,
Lydia moça,
De cabelos cacheados
Sob a boina
Saia plissada,
Pele rosada,
Indiferente,
(Sou eu o fantasma)
Continua pintando
A imagem de uma mulher guerreira,
Joana D’Arc em seu cavalo;
Num halo de luz,
Surge um homem vestido de luto,
Bigode retorcido,
Sentado na cadeira de balanço,
Fuma charuto,
É Bernardo,
O italiano de Luca,
O rico comerciante;
O pai de Lydia, na penumbra,
É apenas um vulto;
Na cozinha,
Ao lado do moedor de café,
Siá Jovita
Amassa roscas de chipa;
Na varanda,
Dona Amélia cuida das flores:
As rosas desabrocham,
Vermelhas de sangue,
Enquanto as camélias desmaiam de brancura;
Nenhum deles me nota,
Deslizo
Pelo piso de tábua,
Percorro cada quarto,
Cada canto,
Pelo piso de tábua,
Onde santos,
Calados em seus nichos,
Fixam em mim
Seus olhos bentos.

Saio devagar,
Rumo à avenida,
Ao futuro,
À aurora,
Não sei se essa hora
É o agora
Ou o declínio do passado.

Raquel Naveira

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Deixa-me seguir para o mar, de Mário Quintana

Tenta esquecer-me... Ser lembrado é como evocar-se um fantasma... 

Deixa-me ser o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo...

Em vão, em minhas margens cantarão as horas, 

me recamarei de estrelas como um manto real, 

me bordarei de nuvens e de asas,

às vezes virão em mim as crianças banhar-se...

Um espelho não guarda as coisas refletidas!

E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar, as imagens perdendo no caminho...

Deixa-me fluir, passar, cantar...

toda a tristeza dos rios é não poderem parar!

Mário Quintana 


terça-feira, 10 de maio de 2022

Galos, crônica de Raquel Naveira

Meu tio que morava na fronteira, num sítio chamado “Vingança”, era fascinado por rinhas de galo. Criava galos de vários tipos e cores. Tinha orgulho de suas esporas, de suas caudas compridas. Criava-os para a morte, gladiadores para sua arena, que ficava ali, perto do poço.

As rinhas de galo atraíam muita gente: homens rudes, vampiros de olhos injetados, acostumados a castrar boi, a arrancar couro, a ver tripas de fora. Algumas mulheres assistiam às lutas com as veias saltadas, as mãos crispadas, espantadas com aquele jogo semelhante a sexo bruto. As crianças eram afastadas, mas sentiam o clima de um mundo feroz, feito de raiva crua, de potência, de violência escarlate. Atiçavam os galos um contra o outro; a cólera crescia; o desempenho das aves no combate era cheio de fúria e desejo desmesurado. A pele de algumas pessoas, toda eriçada, assemelhava-se à pele dos galos esfolados, já sem penas. Depois do sacrifício, sentavam-se, repartiam as apostas, o suor borbulhando como cerveja. A tarde vermelha afogava suas mágoas no crepúsculo, manchada de sangue inocente.

O galo, guerreiro vigilante perante o horizonte, alma atenta, consagrada aos astros, espírito que se levanta na madrugada, remete-nos ao poema “Tecendo a Manhã”, de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã: /ele precisará sempre de outros galos,/ De um que apanhe esse grito e o lance a outro;/ de um outro galo/ que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro;/ de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, de uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos”. Linda essa imagem do galo poeta, em sua supremacia espiritual, espalhando seu canto que faz despertar o homem que está em trevas para a luz, para a esperança de um novo dia.

Os galos cantam religiosamente por volta da meia-noite e mais tarde, ao amanhecer. A que horas terá cantado aquele galo que o discípulo Pedro ouviu após negar Cristo? Lembrou-se das palavras que o mestre lhe dissera: “- Em verdade te digo que esta noite, antes que o galo cante, me negarás três vezes.” Pedro chorou amargamente. Com orgulho, soberbo, sem conhecer a si mesmo e às suas fraquezas, havia replicado: "- Ainda que seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei.” E negou, e mentiu e disse que não conhecia aquele homem que fora preso pelos soldados romanos, que não andava com ele, que não verteria seu sangue por ele, que o levassem para seu destino de morte e de cruz. Jurou, praguejou, diante do lume do fogo. Até que o galo cantou. A trombeta postada nos baluartes da torre tocou anunciando a vigília da noite. Fora um covarde. Tropeçara. A consciência o acusa. Lágrimas de arrependimento, de luto e consolo escorrem por sua face.

Os galos são tão belos e altivos! O galo branco com a crista rubra de um mandarim transmite bondade, confiança, coragem. Que triste a recordação daqueles bárbaros assassinatos na fronteira. Para surpresa do público, Jânio Quadros proibiu as rinhas de galo num de seus polêmicos decretos como presidente enlouquecido, destituído do poder por forças ocultas. Mas as brigas continuaram em sanhas clandestinas. Presenciei rinhas de galo. Sentia uma compaixão imensa pelos galos; por meu tio, que eu amava tanto e pela humanidade inteira.

Raquel Naveira

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Nicette Bruno ao final de A Vida da Gente

"Quem teve o privilégio de viver muito sabe que o tempo é um mestre muito caprichoso.

"Às vezes, as suas lições são tão repentinas que quase nos afogam. Outras vezes, elas se depositam devagar, como a conta-gotas, diante da avidez de nossas perguntas.

Fala de Iná, personagem de Nicette Bruno ao final de 
A Vida da Gente.

Para ver no celular, ao final da página
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