Translate

domingo, 30 de maio de 2021

Línguas que se beijam...

De Eduardo Affonso, o texto abaixo sobre a grandiosidade da Língua Portuguesa

Museu da Língua Portuguesa, São Paulo

Volta e meia alguém olha atravessado quando escrevo “leiaute”, “becape” ou “apigreide” – possivelmente uma pessoa que não se avexa de escrever “futebol”, “nocaute” e “sanduíche”.

Deve se achar um craque no idioma, me esnobando sem saber que “craque” se escrevia “crack” no tempo em que “gol” era “goal”, “beque” era “back” e “pênalti” era “penalty”. E possivelmente ignorando que esnobar venha de “snob”.

Quem é contra a invasão das palavras estrangeiras (ou do seu aportuguesamento) parece desconsiderar que todas as línguas do mundo se tocam, como se falar fosse um enorme beijo planetário. As palavras saltam de uma língua para outra, gotículas de saliva circulando em beijos mais ou menos ardentes, dependendo da afinidade entre os falantes. E o português é uma língua que beija bem. (rsrsrs).

Quando falamos “azul”, estamos falando árabe. E quando folheamos um almanaque, procuramos um alfaiate, subimos uma alvenaria, colocamos um fio de azeite, espetamos um alfinete na almofada, anotamos um algarismo.

Falamos francês quando vamos ao balé, usamos casaco marrom, fazemos uma maquete com vidro fumê, quando comemos um croquete ou pedimos uma omelete ao garçom; quando acendemos o abajur pa ra tomar um champanhe reclinados no divã ou quando um sutiã provoca um frisson.

Falamos tupi ao pedir um açaí, um suco de abacaxi ou de pitanga; quando vemos um urubu ou um sabiá, ficamos de tocaia, votamos no Tiririca, botamos o braço na tipoia, armamos um sururu, comemos mandioca (ou aipim), regamos uma samambaia, deixamos a peteca cair. Quando comemos moqueca capixaba, tocamos cuíca, cantamos a Garota de Ipanema.

Dá pra imaginar a Bahia sem a capoeira, o acarajé, o dendê, o vatapá, o axé, o afoxé, os orixás, o agogô, os atabaques, os abadás, os babalorixás, as mandingas, os balangandãs? Tudo isso veio no coração dos infames “navios negreiros”.

As palavras estrangeiras sempre entraram sem pedir licença, feito uma tsunami. E muitas vezes nos pegando de surpresa, como numa blitz.

Posso falar grego, e estou mesmo. Sou ateu, apoio a eutanásia, gosto de metáforas, adoro bibliotecas, detesto conversar ao telefone, já passei por várias cirurgias. 

E não consigo imaginar que palavras usaríamos para a pizza, a lasanha, o risoto, se a máfia da língua italiana não tivesse contrabandeado esse vocabulário junto com a sua culinária.

Há, claro, os exageros. Ninguém precisa de um “delivery” se pode fazer uma “entrega”, ou anunciar uma “sale” se se trata de uma “liquidação”. Pra quê sair pra "night" de "bike", se dava tranquilamente pra sair pra noite de bicicleta?

Mas a língua portuguesa também se insinua dentro das bocas falantes de outros idiomas. Os japoneses chamam capitão de “kapitan”, copo de “koppu”, pão de “pan”, sabão de “shabon”. Tudo culpa nossa.

Como o café, que deixou de ser apenas o grão e a bebida, para ser também o lugar onde é bebido. E a banana, tão fácil de pronunciar quanto de descascar, e que por isso foi incorporada tal e qual a um sem-fim de idiomas. 

E o caju, que virou “cashew” em inglês (eles nunca iam acertar a pronúncia mesmo). “Fetish” vem do nosso fetiche, e não o contrário. “Mandarim”, seja o idioma, seja o funcionário que manda, vem do portuguesíssimo verbo “mandar”. O americano chama melaço de “molasses”, mosquito de “mosquito” e piranha, de “piranha” – não chega a ser a conquista da América, mas é um começo.

Tudo isso é a propósito do 5 de maio, Dia da Língua Portuguesa, cada vez mais inculta e nem por isso menos bela. Uma língua viva, vibrante, maleável, promíscua – vai de boca em boca, bebendo de todas as fontes, lambendo o que vê pela frente. Mais de oitocentos anos, e com um tesão de vinte e poucos.

domingo, 16 de maio de 2021

Um pai, para sempre no peito desse filho

   Bruno Covas (41) segurando a mão de Tomás (15)

                            Um pai

                 Fabrício Carpinejar 

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir. 

Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho. 

Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios. 

Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte? 

Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles. 

Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que seu filho contasse com a certeza da companhia diante da ameaça da ausência. 

Quem é pai entendeu a sua controvertida escolha. Ele era fanático pela sua criança. 

Preocupou-se em reservar o seu tempo derradeiro para fazer segredo, realizar um sonho prometido e entregar secretamente parte de si a quem mais amava. Esqueceu a sua condição pública e o seu adoecimento irreversível para gerar a intimidade das palavras finais, para um último e inesquecível gol da cumplicidade a dois. 

Bruno Covas queria que a saudade do filho partisse da arquibancada, do alvoroço, dos gritos de incentivo, e não do silêncio do velório. 

Não podemos definir a data de nossa despedida, mas escolher o que ficará de nós, moldando o tempo que nos resta e a matéria da lembrança. 

Morreu um pai mais do que um prefeito.


Cheirinho de alegria