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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Casa das saudades

Aquela casa ficou-lhe apertada de saudades de quem já não havia mais, por isso mudou-se, sem mudar a dor que levou consigo, apertada na bagagem do peito. 

Ouço uma anhuma com seu alarde nos anunciar o perigo maior: a morte de muitos, mais de quinhentos mil, isso somente no Brasil.

Que país é esse onde o medo se espalha feito mortalha? Cuidado, o invisível ameaça com suas letais  e múltiplas cepas: britânica, brasileira, africana e indiana.

Nesses dias breves, o toco-toco, pássaro brejeiro, a cada manhã vem nos prevenir uma triste estatística de óbitos, incluindo um conhecido, um vizinho, um amigo, o toco-toco deseja estancar uma lágrima, ele quer de alguma maneira nos distrair em meio a esse mar de mortos.

Uma multidão de amores, de repente, abruptamente, morreu. Há um aperto no peito, um vazio na casa e o poeta pôs-se vestido de saudades vivas, agora, como despir-se delas?

A anhuma de novo alerta com alarido, pois há um grave perigo na esquina, um vírus numerado, denominado Sars-CoV-2, continuamente, rapidamente, ceifando vidas incontáveis, feito o anjo mortal. 

Pela manhã o toco-toco virá dos pântanos, com seu canto distinto, de todo modo intentar nos consolar.

Diante dessa pandemia político-partidária bem poderia haver uma vacinação eficaz contra a mentira, a maldade, a antiética e a corrupção.

Com seus voos, diversas anhumas tracejam cruzes, meio milhão delas nos ares sombrios, suas asas estão pesadas de tristezas.

Daquela casa, a morte levou o pai, a mãe e o irmão, ficou apenas ela, na tentativa de reinventar algum possível sentido, que o excessivo pranto, talvez, a ajude.

A gente nunca quis só comida nesse tempo breve da existência. Há inúmeras desumanidades!

“Meus sentimentos” tornou-se uma expressão dita até à exaustão.

Um dia triste, sem saúde, sem oxigênio, com imensa dor mais uma pessoa finda o seu tempo, num certo dia morto... Dia dezenove de junho da era de dois mil e vinte e um. 

Ismael Machado 



sábado, 5 de junho de 2021

O grande ator adormeceu sobre o tablado...

O texto abaixo, inspirado na obra de Matëi Visniec e na peça "Ensaio sobre a Lua", 
foi escrito por Ismael Machado

***

Ensaio sobre a minha cegueira, além da Lua, enquanto ela escorre sangue  das minhas entranhas.

Lua, lua amiga, não tenho um novo amor, só trago  efemeridades em mim, um desalento e não avisto o seu fim. 

Lobisomens uivam e amam ou devoram sob a luz do luar. Seus olhos são globos assustados,  ensandecidos.

O leite da loba de Rômulo ainda alimenta  a lua de prata que faz de Rêmulo um poeta nato. 

O bicho vagueia sob a lua cheia, o bicho grita pela hora da estrela e ele se renova a cada fase e meia.

A lenda do surgimento da lua apareceu no seio das mulheres indígenas e depois que saiu do ventre do feminino ela flutuou e até hoje levita no entorno da Terra.

Nossa Senhora dos Atormentados, acalmai as marés e as muitas menstruações dos homens.

O livro iluminado pelas lendas acende a lua cada noite cheia de sonhos.

Perceba, esse corpo não é seu, a lua não é minha, só nos resta a ilusão das posses, do trabalho, mas aguardamos as artes, pois elas nos haverão de humanizar, libertar...

Perco as minhas faces ao mirar a lua, mas eu desejaria tocá-la com as minhas mãos, beijar o seu lado oculto, perdido desses meus olhos escuros, ansiosos pelo mistério. 

***

"Ensaio sobre a Lua" trata-se d'uma bela peça teatral, foi criada, dirigida e inclusive encenada por Jair Damasceno, esse moço apaixonado pela dramaturgia. 

Ante a cegueira do mundo, brilha a grandiosidade dos textos ali encenados, textos muitíssimo bem selecionados.

Pode-se perscrutar pela cortina de fina tela a trespassar a realidade e a cena, um homem lendo um livro iluminado, como quem olha para uma meia lua inteira, uma lua de "led". No meu devaneio, vi, bem ali o astronauta consternado ao pisar a Lua pela primeira vez. Bem,  é sempre a descoberta do belo, seja na arte ou na realidade, o que os atores mesclam com maestria. 

Parabéns a toda a trupe de "Ensaio sobre a Lua". Uma linda peça. 

Vai em paz, amigo de todas as artes!

terça-feira, 1 de junho de 2021

Rosa, a mais linda valsa, pelo Trio Amadeus

A valsa tem uma história interessante. Pixinguinha fizera-lhe a melodia havia muito tempo, mas todos achavam que era preciso uma letra.

Nunca, porém, ninguém se interessou.

Havia, em Engenho de Dentro, um mecânico de automóveis chamado Otávio de Souza, um poeta bissexto.

Ele então fez a letra (*), uma improvável obra-prima para os amigos.

Um dia, nas quebradas, ele encontrou o velho Pixinga, e dele se aproximou, tangido pela inibição própria de um mecânico de subúrbio.

Pixinguinha era a fina flor da educação, sempre pra lá de elegante, e dignou-se a recebê-lo.

Ele então recitou a letra de “Rosa”, o mais belo poema parnasiano da MPB, e Pizindin (era assim que a vovó o chamava) encantou-se com versos tão belos.

Ali estava Otávio de Souza, seu mais novo parceiro e a música, depois de gravada, ganhou as ondas do rádio na interpretação magistral de Orlando Silva, o maior cantor que este país já teve.

Música difícil de interpretar, até por causa do fraseado poético, parnasianismo puro.

Recebeu, contudo, muitas gravações.

De todo modo, os louros e loas que se fazem a “Rosa” vão quase sempre para Pixinguinha, que, é claro, os merece.

Poucos, ou quase ninguém, lembra-se do mecânico de Engenho de Dentro, autor de uma música que, conquanto presa aos limites da sua unidade, equivale a todo um cancioneiro musical.

Uma obra-prima, maravilhosa.

Um dia ainda há de se fazer justiça a Otávio de Souza.

(*) Há quem pense que o autor da letra seja o parceiro de composições de Pixinguinha,  Cândido das Neves.