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sexta-feira, 20 de maio de 2022

Lídia Baís, por Raquel Naveira


Lídia Baís foi a precursora das artes plásticas sul-mato-grossenses, nascida em 1900, aluna de Henrique Bernadelli e Osvaldo Teixeira, amiga de Murilo Mendes, dona de um espírito genial, sensível e atormentado. Era filha de Bernardo Franco Baís, o italiano de Luca, que escolheu Campo Grande nos idos de 1879, forte e poderoso comerciante, dono do sobradão da Afonso Pena, à beira dos trilhos, conhecido como “Pensão Pimentel”, local onde hoje funciona o SESC-Morada dos Baís, que abriga um pequeno museu com peças e quadros de Lídia, ponto de encontro para música e atividades culturais.

Personagem intrigante: uma artista de alma amarrada e flagelada, talento que desabrochou e foi abafado na marginalidade. Lembro-me bem dela. Fui sua vizinha durante muitos anos. Eu a via, às vezes, atravessando a rua, em direção à casa de seu irmão Bernardo: saia plissada, meia soquete, cabelos em cacho sob a boina, lenço terminado em laço no pescoço. Ela despertava em mim o fascínio e o horror que as crianças têm por seres fantásticos. Ficávamos de pé junto ao portão de ferro, observando o pátio coalhado de cachorros e galos, com medo de sermos pegos em flagrante naquele ato de espionagem. Vizinhos e parentes contavam histórias sobre ela, seus quadros, seus hábitos estranhos. Quando ouvia comentários do tipo: “_É meio louca”, eu pensava o quanto aquelas pessoas eram cruéis e impiedosas e nutria por ela a secreta admiração que tenho por todos os desterrados. Lídia tem sido presença constante em minha poesia. Vários de meus poemas, direta ou indiretamente, falam de Lídia. De “Pensão Pimentel” cito este trecho:

Foste palacete
Com lustres,
Cadeiras de balanço,
Retratos da Europa;
Abrigaste sonhos de um artista

Que desenhava frutas, mulheres, dragões.

Em “Confissão de uma monja”, espécie de lamento da mulher solitária, veio-me a lembrança de um quadro de Lídia, onde o homem carrega uma cruz de tamanho proporcional e a mulher uma descomunal encimada por um dragão, uma serpente e uma maçã:

Eu sei irmã,
Que minha cruz é de bom tamanho,
Que posso carregá-la,
Que as formigas suportam muitas vezes mais
O próprio peso,
Que ela é leve
Comparada a outras cruzes,

Que devo agradecer volume
E medidas razoáveis
Para uma cristã,
Eu sei irmã,
Que não se deve lamentar,
Que no caminho da mulher
Há sempre um dragão,
Uma serpente,
Uma maçã.

Fui uma vez a uma festa junina numa fazenda que se chamava “Fazenda das Moças”. Indaguei o motivo do nome e me disseram: as moças eram Lídia, Ida e Celina, as irmãs Baís. Nascia um poema, do qual transcrevo estrofes:

Aqui, na "Fazenda das Moças"
Viveram moças
Que envelheceram,
Murcharam como flores dentro de livros.

***

Eram moças
E, embora hoje seus ossos tenham séculos.
Continuam sendo moças,
Caminhando, ávidas de amor, pela fazenda.

Observando o famoso quadro da Santa Ceia em que Lídia se retratou ao lado dos apóstolos, escrevi o poema “Sacristia”, que finaliza assim:

Encarei o olhar vítreo dos santos,
O semblante de cada apóstolo
E coloquei-me ora do lado de Cristo,
Ora ao lado de Judas
Na Santa Ceia.

O problema de Lídia, seu estar-no-mundo-acorrentada, foi de ordem espiritual. Lídia, sedenta de Deus como uma corça diante do manancial das águas, serviu ora a Deus, ora ao demônio do egoísmo e da insegurança. Ficou presa na própria teia como uma aranha trágica e fatal. Ah! Como a compreendo! Como me compadeço dela na sua lucidez e na sua demência.

No centenário da Morada dos Baís, Lídia foi tema de uma peça teatral, um monólogo com a atriz Tatiana de Conto interpretando Lídia, direção de Thaty D. Meo e pesquisa de Fernanda Reis. Também inspirou um concerto de músicas que ela amava e outras que ela compôs, com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campo Grande, sob a direção do regente Eduardo Martinelli. Resgate de raízes profundas de nosso inconsciente coletivo.

Logo que a casa foi restaurada, vitória da conscientização e da memória da cidade, escrevi o poema “Casarão dos Baïs”, após a leitura do livro Duas Vidas: Bernardo e Lídia Baís, de autoria de Nelly Barbosa Martins:

Crepúsculo,
O sol marcha para o oeste
No oeste do país,
A oeste, o futuro,
A nova aurora
E eu, todo mergulhado
Na nostalgia dessa hora.

Com os pés nos trilhos,
Observo o sobradão:
As portas e janelas em arcos,

As ponteiras em forma de pinhas,
As paredes alaranjadas
De pôr-do-sol.

Ouço o barulho do trem,
Serpente de ferro rangendo,
Soltando fumaça;
A boca da noite cospe fagulhas
Sobre meu chapéu.

Antes de ser abatido pelo trem,
Corro em direção ao casarão,
Abro a porta,
Um raio de sol entra pelo vão,
Vejo Lydia no centro da sala,
Lydia moça,
De cabelos cacheados
Sob a boina
Saia plissada,
Pele rosada,
Indiferente,
(Sou eu o fantasma)
Continua pintando
A imagem de uma mulher guerreira,
Joana D’Arc em seu cavalo;
Num halo de luz,
Surge um homem vestido de luto,
Bigode retorcido,
Sentado na cadeira de balanço,
Fuma charuto,
É Bernardo,
O italiano de Luca,
O rico comerciante;
O pai de Lydia, na penumbra,
É apenas um vulto;
Na cozinha,
Ao lado do moedor de café,
Siá Jovita
Amassa roscas de chipa;
Na varanda,
Dona Amélia cuida das flores:
As rosas desabrocham,
Vermelhas de sangue,
Enquanto as camélias desmaiam de brancura;
Nenhum deles me nota,
Deslizo
Pelo piso de tábua,
Percorro cada quarto,
Cada canto,
Pelo piso de tábua,
Onde santos,
Calados em seus nichos,
Fixam em mim
Seus olhos bentos.

Saio devagar,
Rumo à avenida,
Ao futuro,
À aurora,
Não sei se essa hora
É o agora
Ou o declínio do passado.

Raquel Naveira

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