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domingo, 22 de maio de 2022

Diários de Bicicleta, de Lucilene Machado

Sábado à tarde, quase outono, quase frio, quase nostalgia ressoando no ar e você sente que a felicidade está bem perto, um movimento e você será capaz de tocá-la. Pela cidade, prenúncios de estreias, de shows, de recomeços, gente voltando das férias, motos correndo e eu a espiar a manifestação de um prazer quase do avesso. É a vida num país tropical.

O homem, que cruza meu campo de visão, carrega uma mulher no guidão da bicicleta, o que me trouxe à memória qualquer coisa inquietante. Já estive sentada no guidão de uma bicicleta. As mulheres de minha geração estiveram. Era estar dentro de um abraço frouxo que poderia ser apertado a qualquer momento. O homem encurvava a coluna como uma forma de proteção à sua passageira que, por sua vez, abria um sorriso aos passantes. Era preciso certo equilíbrio para superar as curvas, os desníveis do caminho, o areal acumulado nos vales e quase sempre se terminava em queda. Bicicleta de um lado, corpos de outro. Ficávamos estatelados no chão a olhar o céu, porque valia muito mais olhar o céu do que a terra.

Depois o relógio foi torcendo o tempo sobre os viadutos, sobre os asfaltos velozes onde voam os carros e, o cinza subúrbio poluiu o céu. Os sonhos que eram poéticos se acabaram, como acaba qualquer modismo. A vida vai urdindo o necessário para dissimular o romantismo dos jovens e já não se vê, pela cidade, cenas como essa. Elas desapareceram dos reinos que desapareceram dos mapas. Ficamos nós tropeçando em memórias antigas, porque as recordações abarcam tudo e não apenas as grandes efemérides do coração. 

Invejei a moça de cabelos loiros esverdeados (e diga-se, esvoaçantes) que mantinha as pernas esticadas para dar equilíbrio ao ciclista. O casal cheio de gestos livres e risos soltos possuía seu centro de gravidade, seu eixo, sua densidade própria que os olhares opositores não modificavam. Não se cansava de fazer girar a bicicleta como também as sedutoras formas humanas de músculos e tornozelos. Aquelas duas pessoas vagabundeando nas ruas eram o centro do universo. Um universo do qual eu estava à margem. Pareciam pedalar entre os campos de lavanda, de um passado qualquer, e nem se deram conta do meu olhar esticado, tampouco dos suspiros retidos no meu peito. Calei-me para ser digna de observar, dentro dos limites dos meus olhos, a forma loura e esvoaçante da vida escorregando pelo tempo, porque a eternidade é feita de cenas simples e inesquecíveis que podem nascer a qualquer momento. Mas, confesso, senti-me embrutecida. A alma querendo escapar, querendo atirar-se sobre a bicicleta, querendo girar... Corri para casa segurando o abdômen, segurando a vida a sacudir-se, a alma insurgida, feito um filho que quer nascer, as vísceras mudando de lugar, ameaça interna, prenúncio de furacão. Eu que andava tão acostumada a coisas prontas não suportei a poesia alheia. O desejo começou a tomar formas estranhas. Precisava me redimir, me purificar, me livrar daquela inveja grudada no estômago.

Em casa, baixei o filme Butch Cassidy & The Sundance Kid (Dois homens e um destino) e assisti várias vezes, até a alma se aquietar. Acabo de olhar no espelho e ver-me partida em muitas, todas muito parecidas, todas com a mesma matriz a arrebanhar pensamentos, a dar teto a um mesmo silêncio até sermos justificadas. Porque não há mulher, por essas bandas da terra, que não merecesse viver uma cena como essa...

Lucilene Machado

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