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sábado, 23 de abril de 2022

Súplica, de Marcílio Godoi

Hoje, mal coloquei os pés fora da cama e já me baixou uma vontade urgente, que amanheceu, aqui dentro, gritando feito bicho desesperado me subindo do peito, arranhando a garganta, querendo saltar pelas têmporas.

Acho que é uma espécie de síndrome de abstinência do Brasil verdadeiro: eis que me deu ganas de sair por aí abordando todos às ruas; senhora, o Brasil não é isso; garoto, o seu país é bem outro; por favor amigo, amiga, escutem, vejam, a nação brasileira não é assim!

Súbito, vivi o ensejo desejante irresistível de sacudir os ombros do motorista do aplicativo e suplicar a ele, cara, por favor me escuta, você já ouviu falar do Antonio Candido? Você sabia que você é contemporâneo da Fernanda Montenegro, sabia? tem noção de que o Darcy Ribeiro é seu conterrâneo? Seu conterrâneo!

Mesmo que parecesse louco, baixou-me essa vontade de ir à padoca e puxar conversa com o chapeiro sobre o Gilberto Freyre e seu malungo, o Nelson Freire, que tanto orgulho me dão de ter nascido brasileiro.

Sei lá, amanheci louco para pôr em roda umas crianças na praça e contar-lhes as histórias da Maria Carolina de Jesus e da Cora Coralina. Repartiria com elas o que disse, o que fez Nise da Silveira, Eunice Paiva, Zuzu Angel, Conceição Evaristo. Ah, tanta coisa linda, de chorar.

Chamaria, agora mesmo, para um boteco os amigos desconhecidos das redes sociais só para lembrarmos juntos de uns heróis nossos, tão recentes em nossa história, sem essa de Tiradentes e generais, mas o Herzog, o Rubens Paiva, o Betinho, Conselheiro, Zumbi dos Palmares, o Henfil. A Marielle, meu d'us, a Marielle...

Amanheci assim, querendo sair às ruas como um menino jornaleiro gritando nomes de caras ainda vivos, de quem tanto me jacto e nem posso, agora, dizer a eles; o Jorge Mautner, a Rita Lee, a Marilena Chauí, o Milton Santos, o Caetano, o Zé Celso, o Hermeto Pascoal, o Tom Zé, puxa vida, gente, esses caras são brasileiros. E estão agora, aqui, no nosso tempo, respirando o mesmo ar que nós.

Olha o Chico! Olha a Elis! Olha o Milton! Olha o Cartola! Olha o Gil! Olha a cara do Brasil! Eu iria saltando pela rua, os olhos arregalados dizendo aos transeuntes: Manja Eduardo Viveiros de Castro? Saca Antônio Callado? Portinari? Niemeyer? Clarice Lispector, pelo amor de d'us, não morra sem saber o que havia de política em seu subtexto!

Bateria em todos os ombros e interfones do bairro gritando na chuva: tem cinco minutinhos para ouvir a palavra de Paulo Freire? Sabia que você nasceu no mesmo país que o Mário de Andrade? E que o Tom Jobim é Brasileiro de Almeida? E o Villa; e o Vina?

Imagino-me cutucando desconhecidos no cinema, como na esquina, entregando panfletos revolucionários com poemas do Bandeira, do Cabral, do Quintana. Olha o poema brasileiro aí, gente! Aproveita, madame. Tá de graça!

Sei lá. Talvez que me prendessem, talvez que me internassem. Mas eu iria resistir, gritando aos carcereiros, aos enfermeiros, posso ler um trecho do Graciliano Ramos para o senhor? Sabe a Elza Soares, senhora? Já leu o Rosa? Moço, o Machado de Assis é brasileiro como você! E numa derradeira súplica, seguraria o braço do policial e muito a sério lhe diria, antes de ele conseguir me apagar, tentando fazê-lo acordar: não deixe de ler A Rosa do Povo, amigo!

Marcílio Godoi (Mestre em Crítica Literária pela PUC-SP)

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