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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Thiago de Mello, o poeta adormeceu aos 95 anos

Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)
 Para Carlos Heitor Cony

 Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
 
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
 
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
 
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
 
Parágrafo Único
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
 
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
 
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
 
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
 
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
 
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
 
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
 
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.
 
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,
tudo (de bom) será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
 
Parágrafo único
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
 
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
 
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
 
Santiago do Chile, abril de 1964.
 
Publicado no livro "Faz escuro mas eu canto: porque a manhã vai chegar", em 1965.
MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2a. edição. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, pág. 198.

2 comentários:

  1. Tive o prazer de dividir o palco com ele em Campo Grande. Na Noite Nacional da Poesia, defendendo um poema do poeta e escritor Reginaldo Albuquerque. Uma presença marcante. Imenso Thiago de Mello. Bonita homenagem, Ismael Machado, parabéns!

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  2. Que alegria meu amigo Elias! Parabéns a você por ter estado com o grande poeta, imagino o quanto deve ter sido marcante. Um grande abraço, Ismael.

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