Adeus Paulistinha, composição de Tonico e Tinoco
Numa ensolarada manhã de outono, ao desejar-me bom dia e boa viagem, logo cedo, tia Nilzinha (83) portadora duma alegria muito apropriada, jamais poderia imaginar que, de fato, eu empreenderia uma viagem interna, no tempo afetivo e da escrita.
Ainda ouço tocando no rádio Adeus Paulistinha, de Tônico e Tinoco, enquanto acabávamos de chegar na rodoviária em Birigui (cidade do noroeste paulista), juntos estávamos vó Dita, vô Jerônimo e eu, ainda criança, levado pelo amor de ambos, descobrindo o mundo e suas nuances. O vô Jerônimo bem compenetrado em seu paletó xadrez e vó Dita com um batom vermelho, ela muito sorridente.
Tomaríamos uma charrete para o percurso até a casa da adorável Dona Lípia, prima primeira da vó Dita, que nos aguardava para o café matinal com um leite quentinho e, provavelmente, mais doce que o seu carinho conosco. Como explicar? Ainda ouço o casco do cavalo batendo no asfalto e posso ver a charrete se encaminhando rapidamente àquele destino afetuoso. Esses pensamentos são tão reais que chego a pensar que por eles existo, que neles flui o sangue da minha existência.
Na ocasião, uma contradição pairava em minha cabeça, porque as mesmas charretes que não podíamos tomar em Caarapó, por serem usadas por mulheres do meretrício, em Birigui eram plenamente possíveis, usadas pela sociedade. Questões de conceito e preconceito que iam se alinhavando em meus pensamentos de menino.
Depois da casa da Dona Lipia o casarão do tio Francisco e da tia Tita era motivo de visita certeira, de abraços e de quanta alegria. Vô Jerônimo e tio Francisco eram dois literais irmãos, não só pela consanguinidade, quanto pela afetividade. Quantos causos seriam ali partilhados entre os mais velhos, e o meu repertório ia se formando para essas linhas futuras.
Uma viagem cansativa, desde Caarapó, setecentos quilômetros, horas a fio, passando por Presidente Prudente, Osvaldo Cruz, Penápolis, mas certamente, um percurso feito de fé, de laços de família, que o tempo, nem a distância conseguiriam apagar. Caminho batido, quantas vezes, percorrido em busca de socorro para as dores do corpo e da alma.
Como não lembrar Dona Linda e Senhor João Dias? Moradores daquela bela e acolhedora casa na Rua Barão do Rio Branco, centro de Birigui, eles, dois portos seguros na caminhada dessa vida. Dois baluartes do amor e da caridade em sua expressão mais pura, verdadeira.
Nenhuma viagem física pode ser comparada a essa, no tempo que nos aproxima de nós mesmos, quantas lembranças, saudades.
Nesta crônica, sem aumentar sequer uma vírgula, observo que todos já partiram, inclusive os cantores da música inicial, e deste lado da vida estamos apenas tia Nilza que me desejou boa viagem e eu, aqui, refletindo sobre a brevidade de todas as coisas.
Esses seres, aparentemente fantasmagóricos, seres espirituais cada um deles, estão tão vivos dentro de mim, quase posso vê-los, tocá-los, cheirá-los, são presentes com a mesma importância com que sempre estiveram comigo.
Aceito esses votos de boa viagem, e sigo ouvindo a canção no rádio, pois, o tempo segue inacabado de viver, e as lembranças me levam em suas asas longevas.
Ismael Machado
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