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quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Amália Rodrigues: a fadista, por Raquel Naveira

Amália Rodrigues

Meu avô português, o Carvalhinho, amava ouvir fados, principalmente os interpretados por Amália Rodrigues, verdadeiro ídolo para ele. Lembro-me das capas de seus discos, a fadista sempre sorridente, lábios vermelhos e xales estampados. O fado, na verdade, se origina do bem brasileiro lundu, música de nossos negros, cantada ao som da viola. Levado para Portugal por D. João VI o lundu mudou de nome, perdeu o ritmo acelerado e se fixou nos tons menores, mais adequados às lamentações e aos melodramas sentimentais, ao som das guitarras repinicadas. Tornou-se manifestação urbana dos bairros populares e operários de Lisboa. Com o advento da Rádio e do disco, as vozes das fadistas Ercília Costa, Ermelinda Vitória, chegam a um público cada vez mais vasto. O fado saltou das ruas e vielas de Lisboa para as casas de fado como o Retiro da Severa, onde Amália começou sua carreira.


Amália, a lisboeta humilde, foi a renovadora do fado, uma voz singular, uma intérprete com intensidade dramática que afirmava que o que interessa é sentir o fado, porque o fado não se canta, acontece. O fado sente-se, não se compreende, nem se explica.


Quando Amália esteve no Cassino de Copacabana em 1944, meus avós vieram do sul do cerrado de Mato Grosso assistir ao espetáculo e voltaram maravilhados com seu fascínio, seu vestido de crepe azul. O avô gesticulava contando sobre aquela noite inesquecível: Só faltei ajoelhar aos seus pés, tanta a emoção! Não há melhor embaixadora de Portugal no mundo!


Os fados preferidos de meu avô marcaram profundamente minha forma de ser, de escrever e de sentir: o doloroso e retumbante “Barco Negro”, de David Mourão-Ferreira:


De manhã, que medo   que me achasses feia

Acordei, tremendo, deitada n’areia,

Mmas logo os teus olhos disseram que não,

E o sol penetrou no meu coração.


Em outro trecho aquele tom de melancolia das mulheres que veem seu amado partir:


Eu sei, meu amor,

Que nem chegaste a partir,

Pois tudo, em meu redor,

Me diz que estás sempre comigo.


E nas horas de alegria, espalhava-se pela casa o som da “Casa Portuguesa”:


Numa casa portuguesa fica bem pão e vinho sobre a mesa.

Quatro paredes caiadas,

Um cheirinho de alecrim,

Um cacho de uvas doiradas,

Duas rosas num jardim,

Um São José de azulejo

Sob um sol de primavera,

Uma promessa de beijos,

Dois braços à minha espera...

É uma casa portuguesa, com certeza!

É com certeza, uma casa portuguesa!


Quando Amália Rodrigues morreu, no dia 06 de outubro de 1999, meu avô José já tinha partido. Acompanhei o noticiário em lágrimas, lembrando dele, de quando eu dançava ao som dos fados, segurando as pontas da saia e ele me chamava de “minha borboleta”. Vi como Lisboa chorou: as flores, os lenços brancos acenando, os sinos das igrejas tocando. Nas ruas, nos carros, nas lojas, por todo lado o fado de Amália. O Fado da Bica, dos Caracóis, da Saudade, do Ciúme, do Silêncio. Ó Flor do Verde Pinho que lavava Portugal, lavava, nas madrugadas de Alfama, Lisboa em Festa, Lisboa das cantigas de amigo, dos fadinhos serranos da Esquina do Pecado. Nunca mais o Tiro Liro Liro. Ai, meu amor, o marinheiro está longe e sou dele e sou tua. Todas as guitarras ficaram tristes. Gaivota. Libertação.

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