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sábado, 5 de março de 2022

A poética do banho, de Lucilene Machado

Há alguns dias ando a pensar sobre a poética do banho. O que nos ensinaram a respeito? O que a cultura plantou na raiz dos nossos cabelos sujos? Desde pequena ouvi: “se não tomar banho, não vai passear!”  e depois aquela negociação para se integrar, ou não, ao mundo dos limpos: “banho bem quentinho, então!”. Não existiam em casa chuveiros elétricos, a água, já amornada, era posta em um  balde que, pendurado numa corda,  por meio de uma carretilha era posicionado no teto do banheiro.  No centro do balde havia um chuveirinho lento que soltava a água aos pouquinhos e uma pequena torneira para ser fechada durante a esfregação. Ainda assim, não poucas vezes, ao final da água, o corpo ainda luzia a espuma do sabão (sabão de coco) e aí tinha de me enxaguar com água fria mesmo, jogada com caneca pela mãe, sem o morno da meia-chaleira de água fervente incorporada ao balde. Minha mãe me procurava entre os cabelos longos e fartos para ver se estava tudo limpo e cheiroso. Nunca estava! Devo dizer que minha mãe me salvou do animal fedorento que ameaçava crescer em mim. Por orientações não muito ideológicas, ela contava histórias de moças encardidas que não encontraram maridos porque não gostavam de banhos. E eu me esfregava muito, com bucha e sabão, para não ficar solteirona – e não fiquei!

Mas isso é uma outra história da qual a estética do banho não me salvou, veio o marido, a violência, o divórcio e nunca mais eu quis casar. Mas o banho com bucha e sabão é lei. Bucha vegetal, das que minha mãe plantava no quintal de casa, as outras não têm o poder de limpar a sujeira invisível que fica atrás da orelha, entre os dedos dos pés e onde o foco dos olhos não chega. A sujeira invisível se não for bem limpa se transforma em ferida e aí a dor, ao banhar-se, é muito maior. Uma dor que vai além da dor. Arde, macera o lugar e dói no corpo por inteiro. A água molha a pele em silêncio, como o faz a chuva. Molha e escorre. Ficam as gotículas nas paredes, fica uma gotinha de lágrima perdendo o seu sal, fica a gente a deparar-se consigo mesma, fica a pergunta: somos os mesmos quando nos fechamos neste pequeno espaço e nos desnudamos de tudo e de todos? Como somos nesse momento em que sentimos o corpo muito mais existente em si mesmo, muito mais vivo, proprietário de segredos e sentidos? Como nos sentimos neste pequeno espaço de solidão onde o individualismo desce líquido e absoluto?

O banho ainda é um bom lugar para lavar as dores. Esfregar as marcas com uma bucha molhada até apagar seu lugar no espaço do corpo. Talvez isso não seja possível em uma única vez, quando a dor está nos lugares invisíveis é necessário se meter dentro da cabelereira farta e ficar assuntando, sentindo, cheirando...porque a dor pode ser o resultado da incongruência dessa luminosidade opaca do mundo dos limpos. Luminosidade que moraliza as consciências e oprime as emoções verdadeiras.

A nossa condição nesta vida é de solidão, mas o que se espera de todos é uma condição de integração, de bons relacionamentos, de conexões profissionais, de amizades, entre outras tantas. A literatura nos sinaliza a necessidade de interagir antropofagicamente com o outro como uma forma de sobrevivência, mas pouco sabemos da dimensão verdadeira da solidão do ser, ao nos vermos desprovidos de coisas para oferecer ao outro, para que de fato essa barganha aconteça. Daí o afastamento. Desse modo, a maioria dos humanos vive sem trocas, sem perceber a importância desse gesto de viver, sem alimentar e sem se alimentar de quem está ao seu lado. A vida passa a ser um banho solitário. As forças da estrutura social se aproveitam disso e derramam sobre nós os seus unguentos aromáticos e nos transformam em seres prontos para passear, fetiches andantes, limpos e esvaziados diante das vitrines do mundo. 

Ao me propor abrir o chuveiro e deixar escorrer sobre o corpo essa fartura de água filosófica, me permiti pensar demoradamente sobre o movimento da mesma no mundo contemporâneo. A dialética do banho reside nesse seu vazio pleno que nos conduz aos sonhos e aos desencantos. Álvaro de Campos, em conhecido poema, traça uma dicotomia entre o mundo dos sujos e dos limpos, e o eu lírico se declara como indesculpavelmente sujo, sem paciência para tomar banho e que tem enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas e que toda a gente que ele conhece nunca sofreu enxovalho e nunca foi senão príncipe, todos eles príncipes, certamente no mundo dos limpos. 

Isso é um paradoxo para nós que nos sentimos os mais limpos do mundo. Aqui a vida cheira a água sanitária. O que percebemos com Fernando Pessoa e muito mais adiante no movimento literário “Realismo sujo”, é que a partir dos amores e desamores, das emoções em todos os níveis, dos erros e acertos, vamos elegantemente nos “ensujando” pela vida afora. O que não implica os âmbitos da higiene, mas, talvez seja interessante terminar essa crônica com o banho dos indígenas, com o prazer puro e incondicional do banho coletivo, um ritual sem imposição, sem adereços e em uma simbiose total, integrando  natureza, corpo e emoção. Quiçá, até aproveitar a delicadeza desse rito poético e lavar a alma. 

Lucilene Machado

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