Passo pela carrocinha que vende milho, curau, pamonha. Aproximo-me: “- Um milho, por favor.” O homem destampa o caldeirão fervente, de espigas que boiam nas palhas verdes. O vapor cheiroso sobe pelos ares.
Lembrei-me das roças de milho da minha infância, de como andávamos entre os longos eixos de cabelos vermelhos, de como o vento balançava as hastes e os festões como bandeiras.
Cora Coralina escreveu o “Poema do Milho”, um retrato sensível do interior do Brasil. O ciclo da vida dessa planta que é alimento do gado e das pessoas. Na “Oração do Milho” ela personifica e dá voz ao milho que se dirige a Deus declarando sua humildade e pobreza. Reconhece a supremacia do trigo, pão universal, Pão da Vida consagrado nos altares. Um Deus no Pão. Quanta simplicidade. Depois dessa introdução, ela começa a descrever os tipos de milho na lavoura: seco, granado, virado, maduro, debulhado, mascado. O lavrador atirando as sementes nas covas e arrastando a terra com o pé. Sacerdote e plantador. O milho nascendo, se levantando, encorpando. Masculino e feminino, germinando em saias, túnicas, cabeleiras, fragrâncias, pendões, polens, numa extravasão de libido vegetal. Força de gênese.
Rute, a personagem bíblica, respigava grãos entre os feixes, apanhava espigas dos segadores nos campos de seu amado Boaz. Cora diz que o grão que cai não deve ser respigado, que é o direito da terra, que a espiga perdida pertence às aves que têm seus ninhos e filhotes a cuidar. Ao lavrador, bastam o monte alto, a cesta cheia.
Devoro com gosto os grãos amarelos. Os dentes rangendo no sabugo, como uma ameríndia do Novo Mundo. Uma asteca adornada de plumas, colares de pedra, segurando nas mãos um girassol. Minha civilização está perdida, mas meus lábios continuam rubros, cheios de polen dessa inflorescência dura que se transforma em papa de farinha. Na selva, vive ainda o espírito do jaguar. O reino do imperador Montezuma não ofereceu resistência aos homens estranhos que chegaram em navios de velas brancas. Que surpresa a deles quando viram o milharal enramado, os falos ofertados e pujantes sob a lua cheia. Foi a deusa Quetzalcoáti que engendrou os homens e o milho com a ajuda de larvas, abelhas silvestres e ossos moídos de gerações passadas.
Seguro nas mãos as palhas do milho quente, cascas boas e fibrosas. Eça de Queiroz, romancista português, autor de “Os Maias” e “O Crime do Padre Amaro”, livros que amo, viveu em uma aldeia chamada Verdemilho, na casa de seus avós paternos. Poderia ter cantarolado um antigo fado: “- Milho verde, milho verde/ À sombra do milho verde...”
Senti-me nutrida, satisfeita. Um dia vivi no ritmo da natureza. Hoje me alegro com uma simples carrocinha que vende milho na rua.
E o poema “Milho” ficou assim:
Milho,
Mágico filho da América,
Planta sagrada,
De douradas sementes
Que se espalham
Entre palhas
E festões.
Enigma amarelo,
De pequenos elos solares,
Sem ele
Não haveria o mundo,
Nem o homem,
Não fosse esse farelo
Que engendrou o próprio pai.
Casca compacta,
Espiga ereta,
Que guarda os grãos,
O polen,
A colheita,
A ceia farta,
De angu pesado,
De farinha moída
Que sustenta.
Milho,
Tua origem,
Entre o junco e a cana,
É a prosperidade americana.
Raquel Naveira